segunda-feira, 7 de julho de 2014




DELICADEZA NO OLHAR


("A simpatia é o coração a sorrir no rosto..." - William Blake)

Preparava-me para um mergulho em papéis. A perspetiva não era boa e o ânimo acompanhava esse estado de espírito. Apesar de ser despachada com as papeladas, é a parte que menos gosto nesta vida de escola! -Tenho que os dividir por assuntos e fazer um memorando que depois vou riscando, já sei, todos os anos é assim, é sempre a mesma coisa... 
Parei para um café, que há coisas maiores que nós, que são verdades inalienáveis. Tive que esperar... -não faz mal, tenho tempo... Comecei a observar-lhe os gestos. Conhecia-o de qualquer lado. Via-se que não tinha experiência nenhuma naquelas funções, atrapalhava-se muito, repetia as perguntas, via-se que nem sabia bem os sítios das coisas. O suor corria-lhe em bica pela cara abaixo e não pude deixar de achar que o pólo do fardamento lhe estava apertado, para além de que era super quente. Será novo por aqui, pensei, está a aprender... Pedi um galão e uma baguete só com manteiga, -mas o galão morno, por favor! Arrependi-me no minuto a seguir. Opá, coitado, atrapalhou-se todo, tenho que misturar com leite frio, não sei, veja lá, mas quer mesmo morno? E o pão, olhe, não tenho baguetes, pode ser destes assim redondo? Punha luva, tirava luva, arfava de calor... A fila atrás de mim crescia... -Não faz mal, dê-me já assim... Não pude deixar de gostar do homem, achei-o simpático e então? Finalmente, lá recebi o que pedira e assisti, de soslaio à cliente seguinte... -mas este pastel de nata está líquido! Olhe, desculpe, mas isto nunca me aconteceu antes... pode trocar? -Sim, claro que sim... e o segundo veio igualzinho. A senhora, já exasperada, repetiu a queixa, de forma mais veemente e ele, coitado, lá foi chamar a outra, uma espécie de chefe talvez, e séria, bem mais séria que ele...

-Mas de onde é que o conheço?? Opá, mas eu conheço esta cara...

Fui o caminho até à escola a mastigar esta ideia... sou péssima para nomes, mas as caras ficam-me na memória com facilidade!!
De repente, bingo! Lembrei-me dele... Era um pai não muito assíduo, já que era a mãe do miúdo quem lá ia diariamente e ele, quando ia, aparecia sempre engravatado, perfumado, vestido com um estilo yuppie, formal, como o emprego de topo lhe exigia. 
Apesar das lembranças fugazes, achava-o educado e cordial, pois, mesmo delegando na mãe toda a relação com a escola, fazia-o com simpatia, enaltecendo o nosso trabalho, assumindo quase uma condescendência simpática que nos agradava. Passava para nós uma delicadeza no olhar, à qual sou sempre sensível...
Hoje, muitos anos depois disto, vi-o, atrapalhado a tirar cafés numa estação de serviço... provavelmente, a vida andou às voltas e ele entrou no carrossel, não sei, nunca saberei, o que sei é que, mesmo num pólo que lhe estava apertado, cheio de calor e muitíssimo atrapalhado com os cafés e os bolos que lhe pediam, passou para lá do balcão uma delicadeza de olhar que me fez sorrir, a mim e à senhora do pastel de nata...
Há coisas que nunca mudarão e ainda bem!

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