terça-feira, 4 de novembro de 2014




FIGOS COM MEL




Estava parada no semáforo vermelho e a fila era interminável. Ainda tinha tempo, por isso não stressei, como de costume. Miúdos distribuídos, algum tempo pela frente, café à espera antes de iniciar o dia de trabalho. Entretive-me a ir arrancando o verniz de uma das unhas que lascara. Mudei a estação da rádio. Não tenho paciência para quando só conversam sem fim. Prefiro ouvir música. No pára-arranca olhei para o passeio e vi-a a subir a rua, ligeiramente inclinada para a frente, como quando se sobe em esforço. Vestia de preto integral, só mudando esta negrura, um apontamento de cinzento, com pequenas bolas pastel, num lenço dobrado ao pescoço. Apostaria que lhe vi duas lágrimas a cair pela cara abaixo. Sim, tenho a certeza que chorava, sem pudor, sem tempo para parar de subir, para as enxugar, como se a pressa da rotina lhe anestesiasse a dor, sem se importar com quem a visse, afirmando pública e assim, despudorada uma mágoa que é sua. Sei que perdeu um um dos filhos há pouco tempo, num grave acidente. Não conhecia o rapaz e com ela também nunca falei, mas vejo-a regularmente em locais que também frequento. Conheço-lhe, embora à distância, alguma simpatia que a caracteriza e um sorriso fácil que, às vezes, comparo com o meu. Enquanto continuou a subir imaginei a dor de perder assim um filho, num dia normal, igual a tantos outros, depois talvez de um até logo banal, num dia também banal.
O meu carro seguiu. Não pensei mais nela durante o dia...

Há poucos minutos, espreguicei-me no sofá, numa dormência tentadora e logo os três vieram para cima de mim, como gatos, atraídos pelo cheiro da mãe. Falaram disto e daquilo e mais disto e mais daquilo e assim e assado e sabes mãe e vê lá e ouve lá, queres ver... numa algaraviada sem fim que me atordoou, mas que também me soube a figos com mel... adoro figos com mel! O meu olhar voou para cada um deles e para o peso e importância que têm na minha vida, para o sentido que lhe dão, para o norte que lhe trazem e assim, num relance de ternura, enquanto me sentia grata e ingrata ao mesmo tempo por não ter tempo para agradecer, foi das suas lágrimas e dela que me lembrei, lesta e ligeira a subir a rua inclinada.
Provavelmente nunca lerá este post, mas não faz mal, é para ela na mesma, por eu não imaginar tamanha dor... 






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