PÓS-OPERATÓRIO
A única vez que fui operada e sujeita a uma anestesia geral foi aos meus 21 anos, para uma cirurgia simples, com um pós-operatório também simples. Não me lembro de pormenores físicos do pós-operatório, a sério que não. Tenho uma memória cada vez mais seletiva, a sério, mas lembro-me que o meu pai estava lá, como uma figura imponente, talvez à espera que eu acordasse, talvez para ver como estaria. Essa recordação vem-me nítida, a da sua figura que tudo preenchia, de homem alto que era, talvez nervoso, expectante em relação à minha reação, ao meu acordar. Foi o meu pai a primeira pessoa que me lembro de ter visto depois da operação...
Tenho vivido nestas férias, assumo, num limbo que me tem sido conveniente, de anestesia, indiferença, distração, remate rápido das coisas para cantinhos esquecidos da memória, do cérebro, do entendimento. Foi uma opção de pré-férias, uma disposição séria a que me propus, para que pudesse desligar, descansar, desfrutar de outras coisas INTEIRAS que também existem e tem-me sabido bem, isto, mas não sou ingénua e sei que o tempo não pode parar, ou andar mais devagar só porque nós queremos fazer perdurar (como se para sempre) sensações que nos são agradáveis. Não, de facto, ainda não somos senhores do tempo assim, dessa maneira e ainda bem, porque assim, não sendo, seremos sempre obrigados a reagir, a começar a despertar destas doces letargias, sacudindo estas teias de inação que se foram criando ao sabor do nosso comodismo. É este alerta sonoro que vai soando cá dentro, devagarinho, ainda um bocadinho ao longe, fazendo acender luzinhas da consciência e da maturidade que nos fazem perceber que a vida real é mesmo assim, desta forma e que não há volta a dar a isto... as férias estão a acabar e com elas acabará também este limbo em que tenho vivido, pois as rotinas que reiniciarão irão empurrar-me para ritmos e logísticas que exigem que esteja bem desperta.
Por circunstancias variadíssimas, muitas delas profissionais, não sei como virá a ser este meu pós-operatório... imagino-o lento, longo, mas não agonizante. Tenho esperança que consiga reagir depressa, adaptando-me a novas realidades, com uma plasticidade que se descobre às vezes ter em situações novas, diferentes, com uma capacidade de ver o bonito e gostoso dessas coisas INTEIRAS, agora de outra forma, só pela razão de que elas continuarão sempre lá, na mesma...
Hoje, quando a bola laranja de fogo do sol começou a cair até à linha do horizonte, tocando a água do mar, dando-me aquele espetáculo diário e gratuito de beleza sem fim, pensei neste meu pós-operatório que se aproxima e pensei, de imediato, no meu pai que, não irá estar lá comigo à espera que eu acorde, não me segurará na mão como fez há 20 anos, não me mostrará a sua ansiedade nervosa naqueles dois grandes olhos verdes que tinha, mas mostrar-me-á na mesma o caminho, fazendo-me ser forte e rápida na resposta e é nele que vou pensar quando o alerta sonoro que já oiço lá ao fundo, estiver aqui pertinho a fazer-me acordar!