UPGRADEZINHO
Lembro-me que me dirigi a ele na sala. Gostava de se sentar no sofá individual, de frente para a televisão. Às vezes punha os pés em cima de uma banqueta e dormitava com o jornal em cima do colo. Era um homem alto, loiro e bonito, acho eu. Tinha uma voz forte e falava connosco sempre com muita clareza, com ideias muito bem definidas, explicando argumentos e mostrando uma capacidade de análise que a mim, me fazia sentir segura. As dúvidas esfumavam-se no ar e eu seguia em frente, sentindo que o caminho só poderia ser aquele que ele me explicava. Há pessoas assim, que incutem segurança nos outros, acho eu...
E era a ele que vinha sempre que estava com dúvidas e era com ele que gostava de falar quando procurava o equilíbrio no meio das indecisões de uma vida adulta que ia, nesses tempos, começando para mim, tendo que escolher caminhos, fazer opções, desbravar etapas...
E lembro-me desse dia... Uma colega propusera-me aquele investimento académico. Uma especialização numa área de ensino que não era a minha. Aliciava-me com a sua companhia e a de mais duas ou três colegas conhecidas, aproveitaríamos a onda de algum desalento que experimentávamos por esses tempos de colocações tardias e fora de horas, dividiríamos os carros e o gasóleo para as deslocações, tudo passaria num instante, -tu até gostas de estudar e de escrever, dizia-me ela, farás aquilo com uma perna às costas. -Eh pá, não sei... não sei se me apetece agora isso, os miúdos são pequenos ainda... - Vá lá, Paula, pensa nisso, ainda tens tempo para a inscrição...
E a ideia ficou a pairar. Surpreendeu-me a segurança com que me respondeu quando o abordei a propósito deste assunto. Eu, segundo ele, não poderia recusar aquele desafio. -Quem sabe o que o futuro te reserva? O saber nunca ocupará lugar e, só por isso, já valerá a pena. Aprender é sempre válido, vamos embora, e ajudo-te na inscrição, nunca se sabe o futuro, tens que ser versátil...
Pois é, e esse futuro chegou e roubou-o de mim, de uma forma abrupta e feroz, no ano anterior à conclusão desta especialização. Acabei-a com determinação, honrando também a sua memória e o que me dissera naquela sala. Guardei este saber numa caixinha do meu intelecto e, sinceramente, lá foi ficando, ficando, sem muito uso efetivo, mas sempre como uma hipótese remota de qualquer coisinha que não podia saber o quê...
Nunca saberei o que o futuro me reserva, nunca saberei se este upgradezinho na minha carreira profissional me irá servir de muito, pois sei que este sistema é incongruente, injusto e viciado, mas lembro-me de ti, papy, sentado naquela sala, com a tua voz possante e paternal, a incentivares-me a continuar e a seguir em frente, sem rodeios, PRONTA A APRENDER COISAS NOVAS E GENTES NOVAS e por estes dias, meia atordoada ainda com estas novas questões concursais que este vínculo à carreira que a especialização em Educação Especial me proporcionou, é em ti que penso, enquanto me preparo para mais este desafio, agora muito maior, acho eu, pois saio da minha zona de conforto, onde me sinto tão bem e vou para águas profundas, longe de pé, muito longe de pé e aqui lembro-me, quase instantaneamente, que, aos meus 6, ou 7 anos, foste tu, possante e atlético, que também me ensinaste a nadar...
Nota: Em julho de 2014, num concurso externo extraordinário, fiz parte dos 1954 docentes que vincularam aos quadros do ministério da educação, após 21 anos de bom e efetivo serviço, 9 dos quais, em estabelecimentos de ensino da rede pública desse mesmo ministério. Este vínculo foi obtido no grupo de recrutamento da Educação Especial, pois fiz uma pós graduação e formação especializada neste domínio, concluída em 2008, o que me conferiu, desde essa data, habilitação também para esse grupo de recrutamento.
Este vínculo constitui a reparação de uma gravíssima descriminação a que estes 1954 professores têm sido sujeitos, ao trabalharem ano, após ano em situação de elevada insegurança e precariedade laboral, sem lhes serem atribuídas as mesmas condições e direitos a que dispõem os seus pares com quem coabitam no dia-a-dia no espaço escola.
in- Associação Nacional dos Professores Contratados
Nota: Em julho de 2014, num concurso externo extraordinário, fiz parte dos 1954 docentes que vincularam aos quadros do ministério da educação, após 21 anos de bom e efetivo serviço, 9 dos quais, em estabelecimentos de ensino da rede pública desse mesmo ministério. Este vínculo foi obtido no grupo de recrutamento da Educação Especial, pois fiz uma pós graduação e formação especializada neste domínio, concluída em 2008, o que me conferiu, desde essa data, habilitação também para esse grupo de recrutamento.
Este vínculo constitui a reparação de uma gravíssima descriminação a que estes 1954 professores têm sido sujeitos, ao trabalharem ano, após ano em situação de elevada insegurança e precariedade laboral, sem lhes serem atribuídas as mesmas condições e direitos a que dispõem os seus pares com quem coabitam no dia-a-dia no espaço escola.
in- Associação Nacional dos Professores Contratados
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