quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014





GERAÇÃO TOUCH



-Sim, eu ia também, a sério, brincávamos todos um bocadinho, mas depois eu ficava lá num cantinho com o meu TABLET. Via os meus bonecos preferidos... tens Net, não tens?... ouvia música, até podia tirar-te fotografias, não te chateava nadinha, nadinha... (espeta o dedo indicador, mostrando-me que é assim, ao toque deste dedo que tudo se faz...)
- E quem é que te disse que me ias chatear? - entrei no jogo, pois já sei que com ela o posso fazer...
- Pois, é assim uma expressão... (faz um gesto que mima a expressão e que, mesmo que eu fosse surda, me faria entender...)
 - Ok, mas e tu achas que eu te queria lá na minha casa, com os outros meninos todos, a brincar num cantinho com o teu TABLET? E não me fazias companhia?
 - Ele faz-me companhia...

Falávamos assim, descontraidamente, num daqueles momentos deliciosos a seguir ao almoço, onde nos sentimos um grupo outra vez e temos só a nossa sala para nós, em que se deixa a conversa fluir, em que os desafio a todos com conversas às vezes destas, assim, nonsense, só para ver o que respondem, como argumentam, até onde a imaginação os leva, até que ponto ela cabe ou não na vida real, de todos os dias, fora dali... Púnhamos a hipótese de irem TODOS  a minha casa. Gostam de me imaginar fora da escola, para lá daquele contexto diário, com uma vida se calhar igual à dos pais e das mães... eu também gosto de lhes dar pedacinhos de mim fora dali e acho que é por isso que ficam presos, atentos, talvez porque me achem completa, não sei... 
Ela é das mais expressivas do grupo e das mais velhas também.Tem uma capacidade linguística e argumentativa fora do comum, às vezes parece-me uma colega da mesma idade que eu e só quando a olho de frente e lhe vejo a carinha em forma de botão de rosa pequenino é que me lembro que só tem 6 anos!
Deste momento delicioso, igual a tantas dezenas de outros, em que ela foi uma das protagonistas, recordo a sua última frase..." ele faz-me companhia..."
Nem vou perder aqui tempo a analisar os efeitos que isto pode ter e o que isto pode querer dizer-me sobre o tempo e os tempos dos meninos e meninas de hoje e da forma como se ocupam... hoje não me apetece fazê-lo e às vezes já receio que seja um discurso tão recorrente que não surta já efeito. Hoje vou centrar-me naquela frase e no efeito que teve em mim que me considero uma pessoa descontraída e aberta ao que é novo. O que é novo, vai deixando de o ser com o tempo e então não nos deve assustar, para além de que nos abre um caminho imenso de oportunidades e conhecimentos. Então, venham os TABLETS e todos os outros GADGETS supersónicos que nos entram pela vida dentro e nos deixam habituados às suas facilidades, ok, venham eles, mas não consigo deixar de preferir imaginar aquela meia-leca que fala comigo de igual para igual, com o mesmo dedo indicador, super, ultra touch, sujo de chocolate, terra, ou gelado...
Serei old fashioned assim?

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014












NÓ DE ESCOTA
Nó muito útil, serve para unir cabos de bitolas diferentes (...) 
in, WIKIPÉDIA




NÓ DE ESCOTA

Sentei-me para meia-hora terapêutica no café, com café, jornal, revista e algum sossego. -Que bom esta pausa- pensei, antes da outra parte do dia.
Poucos minutos depois, chegaram e sentaram-se na mesa ao lado da minha, embora a esplanada estivesse vazia e começaram... Não discutiam um com o outro, discutiam os dois sobre a conjuntura europeia e sobre esta crise que assola (quase) toda a Europa. Só as nossas duas mesas estavam ocupadas a esta hora morta do meio da tarde e eu, mesmo com a televisão em fundo sonoro e o jornal à frente, não pude deixar de ouvir. De facto, é impressionante às vezes, o pouco recato/pudor que muita gente tem quando se senta, ou quando está num espaço público. Ouve-se absolutamente tudo, se não há cuidado e hoje, eu ouvia tudo, como se estivessem sentados ali comigo na mesma mesa, a falar comigo. Olhei-os de soslaio... giros, simpáticos, com ar moderno... perfeitos miúdos de liceu, ou universitários muito recentes. Deviam ser namorados, pois tratavam-se por amor. Os assuntos, em especial este recente da Ucrânia, galvanizavam-lhes o discurso e o tom. Eram defensores de facções opostas e isso ainda tornava mais aguerrido o modo e a voz! - Tão novinhos, pensei... tão giros, tão próximos um do outro, tão densos! 
Foi o meu click de hoje!

Lembrei-me da minha mais velha e das coisas que conta (às vezes!!!) das colegas e das opiniões/conselhos que lhe pedem, da forma como os dá e o que diz, tão mulher já, esta minha filha grande! Imaginei-a facilmente num episódio destes, de esplanada de café, opinando assim sobre assuntos, com esta garra e eloquência, produzindo em alguém que a ouvisse, talvez um efeito parecido com este que eu estava a sentir.
Lembrei-me depois de mim com a idade que julgo ser a deles que ouvia ali ao lado. Lembrei-me de mim com o meu namorado de tantos anos, tão novinhos os dois, a crescer juntos, eloquentes e aguerridos como éramos em situações destas, de confrontos de ideias, de opiniões diferentes, opostas mesmo, tão opostas como as pontas de uma corda, que se unem quando é preciso para fazer nós para a vida
Pois é, é mesmo como um amigo querido dizia no outro dia: ser leal não significa estar sempre de acordo... e não é que isso é mesmo assim? 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014





PITADA DE SAL


Tem o choro fácil, é expressivo e quando se zanga, fala com gestos efusivos e grandes, acompanhando-os de uma voz rouca, como a da mãe. Zanga-se facilmente por sinal, mas também depressa lhe passa o génio, como um sopro que vem de repente e que também de repente se vai. É travesso e muito teimoso, exigindo um braço firme, assumido facilmente por mim sem grandes dramas. Afinal, acho, também sem dramas, que a Natureza é feminina e, por isso, prepara as mães, de antemão, com um radar supersónico que deteta coisas à distância e que lhes faz ter, para cada filho, a dose exata de tudo.  
E hoje, descontraído e travesso, este filho, vinha ao  meu encontro, já de carro quase em andamento. Deitou calmamente os papéis da fartura que comia, para o chão e, de esguelha, vi-o logo a fazer-lhe um reparo, enquanto passava. Percebi do que se tratava e percebi que quando reparou em mim, a mãe do infrator, corou e ficou muito atrapalhado. 
- Desculpe, não vi que o miúdo estava acompanhado... se tivesse reparado, não lhe teria dito nada, mas sabe, sou professor, estes reparos são impulsivos e, de facto...
Nunca o tinha visto mais gordo, era-me perfeitamente desconhecido, mas esta atrapalhação espontânea e um pouco desajeitada, misturada com uma certa cortesia, encantou-me, ao mesmo tempo que me apercebia do efeito que teve nele a minha sorridente resposta seguinte... - Sim, ora essa, também sou professora e mãe de três filhos! Agradeço-lhe o reparo, porque de facto, não se deitam papéis para o chão. Muito obrigada! O carro seguiu e vi, de esguelha, que ficou parado a olhar na nossa direção. Apostaria que estava espantado... 
Não faço ideia da resposta que estaria à espera que eu lhe desse, nem da surpresa que sentiu ao ver que eu reforçava o seu reparo, mas faço ideia das respostas que este professor, coitado, está habituado a ouvir na sua escola, dos seus alunos, dos pais e mães dos seus alunos. Daí o seu espanto e receio quando me viu, uma mãe que aparece, assim do nada, e agora? 
Sorri ao lembrar-me da cara e da ligeira atrapalhação e, de braço firme e dose exata de tudo, acompanhando um mini-sermão até casa, feito também de gestos grandes e efusivos e de voz rouca, agora em modo mãe, senti que é giro podermos receber de um desconhecido, assim de repente, uma pitada do nosso sal...







sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014


PANDAN...

Há uma semana que a cidade onde trabalho está dentro de uma nuvem de nevoeiro baixinho, irritante e deprimente. Eu, como faço pandan com o tempo atmosférico, quase me contagio com ele e de irritante, passo a irritada e de deprimente, passo (quase) a deprimida! É mesmo, à medida que o carro desliza rápido no sentido contrário ao dessa cidade onde trabalho, o sol vai aparecendo, sempre, ainda que fraquinho nestes dias e o tal pandan de cima, continua, mas agora em modo de melhor disposição. Ainda bem, rei sol, que nos trazes esses raios de humor, mesmo sem pedirmos, como se fosse uma ligação direta que não controlamos.

E foi com um humor matinal resmungão e que nunca é muito simpático, que senti, fugidia, uma mão grande na minha e umas palavras murmuradas, em segredo rápido, a um dos meus ouvidos. O torpor enlevado do sono e uma preguicite muito aguda, fizeram com que me centrasse só no gesto diferente do de outras manhãs e no toque daquela mão grande na minha.
Sim, é verdade, é dia de São Valentim, o tal que contrariava normas impostas e celebrava, à revelia, casamentos e uniões de apaixonados, o tal a quem mandavam para dentro da cela, cartas e poemas de amor, numa valentia e eloquência que só os apaixonados têm...
De vez em quando, no meu dia cinzento de nevoeiro atmosférico e outros que tais parecidos, alguns que não controlamos e que só a custo não nos atingem em cheio, porque nos desviamos teimosamente, lembrava-me da mão fugidia que tocou na minha de manhã e no segredo rápido que me foi dito a um dos ouvidos e sem ninguém ver, sorria muito... 
E hoje foi assim, simples, espontâneo, secreto, gratuito, essencial e LUMINOSO, como o sol! Apetece-me dizer... qual nevoeiro qual quê...


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014




DE SUPETÃO...


Não sou dotada de super poderes, nem tenho olhos diferentes dos outros, mas agarro-me à intuição, como se fosse um medidor de alto calibre, infalível na maior parte das vezes e indicador de procedimentos a ter. Tenho reger-me por ela e tento que não me falhe procedimentos, mesmo quando não tenho a certeza do caminho. Acho que o saldo é muito positivo.
E tem sido esta intuição, companheira discreta de viagem, que me tem levado a fazer-lhe só um sorriso mais especial, uma festinha discreta no braço, quase assim, de passagem, enquanto nos cruzamos nos mesmos espaços, um piscar de olhos cúmplice e discreto. Não lhe tenho falado no assunto, não só porque esta companheira de viagem chamada intuição me apela a que não o faça, mas também porque não tenho uma relação muito próxima com ela, é apenas uma colega da mesma escola, com quem estou socialmente algumas vezes. E acho também que o decoro e o respeito pelo sofrimento que não conhecemos e que não é nosso nos manda muitas vezes refrear curiosidade e outras coisas...
Hoje, por acaso àquela hora no mesmo espaço que ela, intui que precisava de falar, queria que a ouvissem, mesmo que a voz lhe tenha saído assim como um sopro arrastado, embalado por uns olhos tristes. Falou do problema de saúde do filho, súbito e aterrador, dos pormenores das operações que fez, da forma como tem lidado com isso e admirei-lhe a coragem de estar ali, de ter voltado ao trabalho, questionei interiormente se os seus alunos continuariam a ter, nestes limbos em que às vezes vivemos, a capacidade de a distrair, de a anestesiar, como às vezes digo que eles fazem, ouvi, ouvi, ouvi sem questionar e senti-me muito pequenina por me queixar às vezes de tantos nadas, por não imaginar o que é viver assim uma situação destas tão medonha e repentina, por ter tanta sorte, lembrei-me da minha mais velha e da do meio e do mais novo e aí parei o meu pensamento, sentindo-me só mãe, com um amor inteiro por eles e por não saber o que faria só de imaginar que lhes pudesse acontecer alguma coisa.
Mais uma vez intui que não seria preciso dizer-lhe nada, pois bastou que ali estivesse e outra vez decidi fazer deste meu espaço chamado blog um mural de homenagem, neste caso a ela e desejar-lhe toda a sorte do mundo e todas as coisas boas e melhores ainda que boas para o seu amor inteiro chamado filho.
E assim hoje, num dia feio de chuva, de uma quase desconhecida, recebi ao colo de supetão, esta lição tão grande de vida e com isto me calei para o resto do dia!! Afinal, temos mesmo super poderes...

domingo, 9 de fevereiro de 2014




PINO MIRABÓLICO


Diziam-me que  - agora, ser bissexual está na moda, é o que está a dar Paula, a sério... Risos, gracejos...  
- O quê? A sério? Porquê que dizem isso? - perguntei, enquanto me lembrava de relatos esporádicos que as minhas filhas fazem relativamente a este assunto e àquilo que vêm na escola... - sim mãe, aquela (ou aquele), estava com uma, ou com um, a sério!! 
Ok, pronto, então 'bora lá falar sobre isso, digam-me o que acham, o que pensam, não será difícil ter um posicionamento crítico, não acham?

São muitos, ruidosos e distraídos. Têm todos entre os 14 e os 16 anos e estão comigo uma vez por semana, num contexto extra-escola. Conheço-os a muitos, desde miúdos pequenos e muitos são colegas de escola das minhas filhas mais velhas e têm, por isso, hábitos parecidos, maneiras de falar, expressar-se, vestir, parecidas...(estão naquela fase desenxabida em que se vestem todos de igual...); conheço-lhes a alguns, os pais e as mães e os contextos em que vivem e se movem e isso dá-me, naturalmente, algum ascendente para conduzir uma conversa agitada e com tudo para correr mal, porque gracejam muito, dizem disparates, perturbam, não estão com atenção, bichanam constantemente segredinhos ao ouvido de quem está ao lado, abraçam-se muito, sentem as coisas assim elevadas ao expoente máximo, enfim; reconheço que às vezes me sinto no meio de uma maratona, ou a fazer um pino mirabólico para que me oiçam, ou para que digam qualquer coisa de produtivo e não se destrua a intenção da COISA, mas consegui!
A conversa foi fluindo, com algumas dinâmicas a ajudar e foram falando disto tudo, do que vêm na escola, do que acham disto, da opinião dos Pais, das suas próprias opiniões e fomos girando num círculo apertado (eu ainda, num esforço hercúleo, de cabeça para baixo e pernas para o ar...) e chegámos aos afetos...  - é porque está tudo trocado, confunde-se tudo facilmente - disse ela.  - Há uma amiga mais especial, uma cumplicidade mais marcada e pronto, acha-se logo que é amor, desse amor, daquele assim entre um casal... 
- E tu, o que achas disso?   
- Não sei Paula, mas é o que é, digo-te eu...

Tem 14 anos e sintetizou quase tudo! Também acho que tem razão, independentemente da minha posição mais adulta, com mais lentes de análise e mais variações de perspetiva. Isso ali não interessava nada, naquele momento. De tudo o resto que se falou ali e se disse, do que se discutiu, partilhou e concluiu, retenho o ar conformado e seguro que me fez quando disse aquilo, como se fosse tudo tão simples que justificasse os danos (quase) irreparáveis que a falta de afeto traz e a confusão de carrossel que essa falta também traz a alguns sentimentos, porque não se questiona, não se pensa, não se posiciona criticamente, engole-se, sorve-se de imediato, como se o mundo fosse acabar e nos levasse com ele...
Mesmo ainda a fazer o pino, a respirar de pernas para o ar e com mais quase três dezenas de anos que ela, achei que ela estava cheia de razão...

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014





AVÔ DA HEIDI


É baixinho e tem o cabelo todo branco. Está quase sempre a sorrir e é de uma delicadeza (quase reverência) para connosco que me encanta. Usa óculos redondinhos e anda devagarinho, como aquelas pessoas que já não têm pressa e que, por isso, saboreiam o que vêm nos outros. Vem todos os dias buscar as duas netas à escola, em horas diferentes, às vezes. A neta mais nova, depois do lanche, dá-lhe a mão pequenina e segue-o, muito contente, caladinha como é, mas detentora de um sorriso feliz. Decerto, já só com ele e os segredos que partilham, vai-lhe contando o que fez durante o dia, ou do que se lembra melhor. Às vezes quando saio, um pedacinho depois, vejo-os ainda por ali, junto ao carro, ou andando enquanto conversam. Percebo que estão à espera da outra neta, um pouquinho mais velha. Quase todos os dias este avozinho me enternece. Acho-o sereno, educado e cortês, com expressões que quase já não se ouvem por aí..."obrigado senhora professora"; "se me dá licença"; "fico-lhe agradecido"... Derreto-me com esta delicadeza baixinha, magrinha e de 75 anos, de cabelo todo branco e com óculos redondinhos de metal e enquanto dura o meu derretimento, fico com mais certezas que o registo doce, calmo, educado e suave desta menina, terá um pedacinho deste avô.

Vejo diariamente muitos avôs e avós de meninos e meninas da minha sala. São muitos e todos diferentes. Há avós novas, modernas, giras e simpáticas, recém reformadas, ou que trabalham ainda (muitas vezes e cada vez mais sendo o suporte económico de muitas famílias), que conduzem e têm telemóveis de topo, com acesso à Net e outras facilidades já tão corriqueiras; há avôs mais velhos, mas vigorosos ainda, que vêm buscar os netos e apoiar os filhos nestas logísticas difíceis dos dias de hoje; há avós e avôs gastos e cansados, de vidas suadas e complicadas, mas que assumem os netos porque sim, a vida não está para coisas e enquanto eu cá estiver... Em todos penso às vezes, lembrando-me também, na sorte que eu e os meus irmãos tivemos por ter tido a presença dos avós em momentos diferentes das nossas vidas e na sorte que os meus filhos têm por terem os avós (de um e outro lado) tão presentes e atuantes. Acredito mesmo que a referência dos avós pode ser estruturante para o desenvolvimento da personalidade, já que pintam o coração dos netos com um pincel diferente do dos Pais.
E hoje, o meu post é para o avô de que falo no início, aquele que anda devagarinho e não tem pressa, pela sua delicadeza, pela sua cortesia, pela sua meiguice, pelo seu ar feliz por poder fazer isto TODOS os dias, sem se importar. Sei que a sua neta é muito sortuda por poder ser co-participante dessas felizes horas e tenho a certeza que vai ficar positivamente marcada por elas.
Acho que o avô da Heidi era alto, robusto e de barbas brancas, bem típico dos Alpes e da vida das montanhas, se bem me lembro da história que adorava, mas pronto, sempre que vejo o avô feliz da minha história, é do avô da Heidi que me lembro, não sei porquê, talvez porque tenham os dois a mesma força e a mesma forma de pintar corações... 




domingo, 2 de fevereiro de 2014






RENAS VOADORAS



-Porquê que estas renas não voam, diz-me, não voam, não voam?....Andava saltitando por ali, repetindo esta frase para cada um de nós, à sua maneira atabalhoada, não se fixando muito no assunto, partindo logo de seguida para outro ponto que lhe despertava o interesse. É um miúdo de 8 anos irrequieto, diria mesmo com segurança que manifesta um deficit na capacidade de atenção e/ou concentração, sei que tem um contexto familiar muito complicado, com alicerces muito frágeis de estabilidade económica, afetiva e de valores, com muito poucas experiências de vida, que o levem para fora da sua vidinha do dia-a-dia e o façam CRESCER de outras formas, com referências também frágeis e, por isso, é tão bom para ele fazer parte deste grupo ligado a outras atividades que não só a escola, porque passeia, vê, conversa, questiona (ainda que desta forma assim irrequieta...), convive, interage... Vai crescendo assim, um bocadinho melhor...

Mas não foi só ele que pôs questões destas, parecidas, assim um pouco espatafúrdias, estranhas... também meninos e meninas que não têm o  seu contexto frágil quase nos limites do equilibrado, também eles disseram que o lince do Parque que visitávamos era um leopardo, que os chimpanzés eram gorilas assustadores e que a suricata não era suricata, era só o Timon, do Rei Leão. Valha-nos a Disney, pensei! Lembrei-me logo de uma pequenita do meu grupo que me disse com ênfase que o leite vem do CONTINENTE... pois sim, querida, é lá que a mamã o compra, mas qual é o animal, ou animais que o dão, sabes?

Pois é!! A falta de experiências de vida não é exclusiva dos meninos frágeis, como aquele que descrevo acima. A falta de experiências de vida pode também ser própria de meninos e meninas que têm (acha-se...) TUDO, mas não o mais importante!
Ver animais mais ou menos selvagens ao vivo, de perto, assistir a filmes na televisão, vídeos, apresentações no computador com imagens reais, ouvir falar das coisas, respeitando a idade, ver livros de imagens, ou revistas, ou fotografias, aprender realidades diferentes das nossas, PASSEAR, mesmo que seja a pé, pelas ruas da cidade onde se vive (há tantos meninos que não estão habituados a andar a pé!!), ouvir os barulhos das ruas e das pessoas nas ruas, ouvir histórias, fazer um bolo e ouvir a explicação do que vai acontecendo aos ingredientes, enquanto se experimenta os sabores, fazer perguntas, não estar sempre, de forma imóvel, quase sem respirar, em frente ao computador, ou a outro gadget qualquer, ler em voz alta para que nos oiçam, ou só para nós, porque queremos e gostamos de ouvir a entoação, como se as personagens da história ganhassem vida mesmo, não fazer nada, mas sentir-se acompanhado, porque a mãe está ali mesmo e não só fingir que está, ser contrariado e mimado e valorizado e repreendido quando é preciso, fazer birras, porque são próprias, mas perceber, ainda que a custo, que a autoridade está no adulto que não se demite... tudo isto proporciona experiências de vida que podem e devem ser da responsabilidade PRIMEIRA da família. Depois, há outros e outras pessoas, grupos e coisas, que darão uma ajudinha, sim, claro, afinal, esta coisa de educar, às vezes partilha-se um bocadinho, mas dizer que a rena verdadeira é aquela que não voa mesmo, nem tem um nariz vermelho que é uma lanterna, porque essa é uma rena feita de fantasia, dos livros de histórias do Pai Natal, que gostamos de ouvir e de brincar; isso, ai desculpem-me, mas acho que ainda é tarefa primeira da família... a custo zero, para já... E tenho a certeza que apesar disso, nenhum pedacinho de criancice lhes vai fugir!!