quarta-feira, 27 de novembro de 2013

 
 
MEDO II
(e copinho de leite morno)
 
 
No seguimento da história de ontem, ao grupo, chegou uma delas hoje perto de mim, pediu-me que me baixasse e disse-me ao ouvido. "-Sabes, eu bebi o tal copinho de leite morno e a minha respiração ficou mais quentinha". "-E soube-te bem?" - perguntei. "-Sim, fiquei melhor, mas não digas nada, está bem? -"Claro, é um segredo nosso, fica descansada". E selei a conversa com uma piscadela de olho retríbuida.
Fiquei maravilhada com isto, que, racionalmente, não tem nada de especial, pois não é novidade para mim, nem para nenhuma colega, que  os miúdos "nos levam para casa" e nos deixam ir pairando por lá, ganhando forma através do que dizem, do que contam. Mas a forma como me disse e o facto de ter transposto para lá, uma dica que dei, em grupo, faz-me sentir referência na sua vida e no seu coraçãozinho, mesmo que depois, com os anos, eu venha a ficar sossegadinha num cantinho distante da sua memória, só ativado quando nos vêm e alguém lhes faz referência a nós, com um "então não te lembras da Paula?
Este dois episódios de seguida, relatados em Medos e Medos II, têm-me adocicado o ego e servido de bálsamo fresquinho para uma irritação constante que me aflora o espírito de cada vez que me lembro da bendita prova de avaliação de conhecimentos que agora se propõe (impõe) aos professores contratados e sobre a qual já falei aqui. (http://agridoceedoce.blogspot.pt/2013/11/circo-es-afetivamente-densa-e-por-isso.html). 
 Não gosto  de estar sempre a "chover no molhado", batendo na tecla de coisas que nos transcendem completamente e contra as quais não podemos lutar, mas esta irritação constante está-me no espírito, no pensamento e nas conversas com tantos e tantos colegas na mesma situação que eu e se isso me dá uma sensação boa de corporativismo coletivo e profissional, também me dá, paralelamente a certeza de que estes episódios que relato e tantos e tantos e tantos outros que fazem parte da vida de um professor, não poderão aparecer nunca em enunciado nenhum de nenhuma prova e muito menos, em qualquer resposta. E esta certeza e só esta, para além de tornar qualquer prova em algo absolutamente redutor, edifica-me de novo...
 
 

 
 
 
 
 
 

terça-feira, 26 de novembro de 2013




MEDOS


"Oh Paula, tu também tens medos daquelas coisas bué assustadoras, a sério?"
S. 4 anos


Tem uma cara redonda, bolachuda e uns olhos pretos, como duas azeitonas. As bochechas são apetecíveis de apertar a toda a hora e tem dois dentinhos à frente separados, que o transformam numa coisa muito fofa. É o autor da pergunta que transcrevo em cima e enquanto me ia lembrando dela, revi, em esquema mental, todo o meu dia com eles...

A história hoje teve braços e mãos e pernas e voz. O arrepio foi-me percorrendo, sem que eles o soubessem, porque os senti presos à minha expressão e ao que contava e adaptava do livro de histórias. Falávamos sobre os medos e do que deles advém e senti-me bem por tê-los ali comigo, debaixo daquela sensação tão grande e boa que nos abraçava a todos, naquele bocadinho indiferente às dificuldades e logísticas difíceis de uma escola que é grande, enorme e, às vezes, descaracterizada.
Falávamos dos medos, como disse e do que fazer quando eles nos assaltam, como devemos reagir, que medos temos, o que sentimos, o que fazemos. É tão maravilhoso ver o que dizem e ver do tanto que nos dizem, outro tanto que podemos depreender de tudo o que os rodeia e os compõe. Os mais velhos relatam sem complexos, com uma simplicidade que só as crianças têm e os mais pequenos, ao seu jeito, vão indo atrás, relatando também e misturando tudo isso com coisinhas que lhes apeteça dizer na hora. Faz-se disso tudo a gestão e conduz-se o grupo para o que se quer, para o objetivo que se pretende e é com esta riqueza que tenho a sorte de trabalhar todos os dias.

Enquanto decorria a conversa, no meu pensamento iam passado imagens de mim própria quando era pequena, não já da idade deles, pois essas memórias provavelmente são frágeis como um nylon fininho e compostas já de retalhos que vieram daqui e dali, mas de recordações do meus medos e sustos e do que fazia e de como reagia, já mais crescida, já mais consciente. Algumas ansiedades e angústias que me povoaram enquanto cresci, ganharam forma de novo, ao sabor desta recordação que tilintava lá ao fundo do meu cérebro, ao mesmo tempo que conduzia a conversa com eles. Também como eles, a figura da minha mãe esteve presente em mim servindo de bálsamo noturno de algumas insónias teimosas e pesadelos incómodos; também como eles, fugia para a cama dela e do pai, sempre quentinha e onde cabia sempre um de nós quando precisávamos; também como eles, era aí que sossegava e sentia que o mundo poderia acabar que não me importava; também como eles era por ela que gritava quando me assustava sem saber com o quê e então senti que há coisas universais e intemporais que não mudarão nunca e que eu estava a partilhá-las com eles, naquele bocadinho indiferente ao resto. 
Sinto que aquela história nos entrou hoje no grupo e nos fez conversar e contar segredos, falar sobre as coisas e tentar vencer os medos, nem que seja só um bocadinho e o que não lhes disse, nem era preciso para nada, é que eles, os medos, irão existir sempre, ganhar novas formas e maneiras, perseguir-nos desta, ou daquela forma, fazer-nos, em alguns momentos, acelerar as batidas do coração e transpirar um bocadinho, mas aí, a solução terá que ser construída por nós, mesmo que nos continue a apetecer, sempre, o colo da mãe!!!


P.S. E como não posso mostrar aqui o meu inspirador de hoje, ponho este, que tem umas bochechas parecidas com as dele...

quinta-feira, 21 de novembro de 2013





Circo


"És afetivamente densa e, por isso, deves, às vezes, apostar mais no racional, equilibrá-lo em relação aos afetos, não deixares que haja espaço para desiquilíbrios que acontecem quando se prioriza sempre um lado, em detrimento do outro... deves estar atenta a isso"...

As primeiras palavras desta frase andaram a ecoar cá dentro, o resto do dia, como a ressonância teimosa de um sino de igreja, daqueles à antiga, grandes e lustrosos, que têm um tom que entra pelo tímpano fora e vai até lá ao fundo e não daqueles sons gravados e programados pelo relógio.  O amigo que mas disse tem um ascendente grande sobre mim e tem o poder de me apaziguar e serenar.
Talvez por ser tão afetivamente densa, sofra mais, não sei, fique a pensar mais nas coisas, lhes dê maior importância, as queira viver em plenitude. Se calhar, tenho mesmo que relativizar mais e ver em perspetiva, de outra forma, com outra lente, outro foco. Mas não há racional possível que me ajude a encaixar esta prova de acesso à carreira que se propõe (impõe) agora aos professores contratados. A sério, acho mesmo que estamos a viver uma fase de circo, de experiências circenses de ilusionismo, faz-de-conta, diversão, só que esta é perversa e tem a desvantagem de mexer diretamente na vida das pessoas!
Não me apetece falar aqui dos tantos anos que tenho de "bom e efetivo serviço", reconhecido e validado pelo mesmo Ministério que agora me quer pôr à prova, sem clarificar como, com que meios, de que forma. Não me apetece dizer o que acho desta prova e da falsa questão que é a de se confundir isto com o "não querer ser avaliado, ou posto em causa". Não vou falar acerca da dimensão de injustiça que é a de se querer questionar uma capacidade profissional assim, desta forma. É desgastante para mim fazê-lo e nem me apetece "sujar" este meu delicioso espaço com estas questões tão incongruentes, incoerentes, injustas e desfazadas da realidade que se vive nas escolas, onde, numa grande maioria das vezes, são os professores contratados que asseguram muita coisa, em tantas situações, embora nada lhes possa ser reconhecido, como se estivéssemos todos num jogo viciado de regras ôcas e ultrapassadas.
 Esta "suja questão" também não me tem tirado o sono, embora me tenha vindo a desestabilizar um pouco, fazendo uns fernicoques de cada vez que me lembro dela. Tenho uma vida pessoal preenchidíssima, com afetos fortes e autênticos, com tanto para fazer e cuidar e tenho a sorte de, mesmo assim, gostar muito do que faço e conseguir, com o olhar das crianças, abstrair-me destas questões e centrar-me neles que tanta coisa me (nos) dão! Também aqui vou tentar racionalizar, perspetivar de outra forma e, não podendo transformar isto, tentar enquadrá-lo da melhor forma possível.
Se continuarei a transmitir aos meus filhos que o importante é fazermos aquilo de que gostamos, para nos sentirmos bem e termos meio caminho andado para que o resto também se componha? Sim, de certeza... 
Se lhes transmitirei que devemos lutar contra as injustiças e que, mesmo perante aquelas que nos transcendem, devemos ter sempre formas de luta e de expressão que não nos anulem, mesmo que só sirvam para que marquemos uma posição e nos sintemos bem connosco próprios? Definitivamente!! (e este meu post, agora, assim, ao ser "mandado" para a blofosfera, terá esse propósito). 
Se lhes direi que este País, ultimamente, está transformado num circo e que me tenho sentido, como tantos outros, um palhaço e que às vezes me apetece desistir de acreditar, optimizar, esperançar? Sim, também, claro!!!!... mas vou tentar, sinceramente, que seja só a parte do circo...

sábado, 9 de novembro de 2013



CERTEZAS MATEMÁTICAS


Faz depois de amanhã (dia 10 de novembro) um ano que iniciei esta aventura blogosférica. Confesso que nunca imaginei que este blog tivesse o efeito que tem em tanta e tanta gente e é muito gratificante para mim receber esse retorno de informação, relativo àquilo que escrevo, comento, digo e partilho. Como este exercício sempre fez parte de mim, não penso nesse efeito no OUTRO quando estou a escrever. Faço-o de modo completamente espontâneo, intuitivo e, às vezes, mecanizado, auxiliando-me do efeito que a escrita também tem em mim: catarse, descompressão, reflexão, hobbie. Acho que isso não mudará e continuará a não me dar tempo para preciosismos literários, insistindo assim, nesta escrita pessoal e despretensiosa... Penso que o que mudou foi simplesmente e só o suporte... do caderninho preto (que continua a fazer parte vitalícia do interior das minhas malas e que serve para tudo, tudo, tudo...), passei para uma blogosfera quase infinita, neste passo de gigante a que me atrevi.
E hoje o impulso foi assim, simples, espontâneo, inesperado... Depois de um dia relativamente calmo, seguimos em modo relax para um jantar a três, eu, o mais-que-tudo e a agridoce mais velha. Por circunstâncias várias, os mais novos não nos acompanhavam e lá fomos a um sítio MUITO agradável, com ar clean, luminoso e cuidado. A conversa fluíu descontraída, variada, animada e célere, ao ritmo de uma série de coisas que ali se estavam a dizer e a partilhar, resultados de uma semana inteira de pequenos tudos e pequenos nadas que preenchem os nossos mundos, de todos, e ao sabor de uma comida maravilhosa, ou não fosse eu uma, para sempre (e para o bem e para o mal), gourmet! A parte reflexiva do meu cérebro ia processando a informação durante este momento! De repente percebi que estavam ali, à volta daquela mesa, três adultos que falavam e partilhavam opiniões, que discutiam pareceres, que opinavam acerca dos assuntos que surgiam e vi-a como uma de nós, quase! Esta minha formiguinha, como lhe chamava em bebé, já não é bebé, nem sequer criança. Cresceu e acutilou o espírito, é eloquente e determinada e falámos com ela assim, despretensiosamente, como falamos com um adulto que nos acompanha numa conversa agradável e saborosa. Vai continuar a crescer e a modelar-se, eu sei, mas hoje vi-a assim, desta forma e, inesperadamente, senti que os imputs já lá estão todos e não haverá já muito mais que possamos acrescentar. O resto do caminho é dela agora e ainda bem, pois é assim que tem que ser, mesmo que continuemos aqui, ativos e atentos, SEMPRE!!! 
Olhei de relance depois para ele. Tenho a certeza que sentia o mesmo que eu, já que há coisas que não se explicam, só se sentem, suportadas em anos e anos de cumplicidade e partilha de um amor, de um projeto de vida. Talvez ele não tenha este neurónio escritor logo a pedir-lhe para passar isto para as palavras e letras, é matemático, mais racional e pragmático, mas sei, com uma certeza mais que matemática, que o sentiu também e eu, ali naquele relance de tempo, ao mesmo tempo que continuava a embalar-me na envolvência subtil e descontraída daquele momento, senti-me muito feliz por tê-los os dois na minha vida e percebi que tenho tanta sorte!!!


P.S. Quando regressava a casa, ainda cheia de ar pela minha sorte, no rádio, apanhei uma música da Mafalda Veiga. Apesar de não ser grande fã do seu arzinho aprumadinho, cabelo lisinho, tudo direitinho e de preferir alguma irreverência na imagem, acho-a um PORTENTO em termos musicais e ADORO as suas letras, sobretudo as letras. 
"Sei de cor, cada lugar teu, atado em mim, a cada lugar meu (...)"... 
Bem!!! não podia ser melhor!! Sei lá, se calhar é por isto que tenho aquelas certezas matemáticas, que, mesmo no silêncio me dizem tudo, quem sabe??? E ninguém no carro, percebeu porque sorri...

quarta-feira, 6 de novembro de 2013







CINZENTO = PRETO+BRANCO


Vinha embalada pela condução e pela música e pensava que o pé esquerdo estava constantemente a trabalhar na embraiagem, tal era a cadência do pára/arranca do trânsito neste princípio de tarde. Os dias têm sido cinzentos, por uma série de acontecimentos que me têm rodeado, dançando à minha volta e obrigando-me a acinzentar também... 
Passei por uma zona da cidade, por onde passo todos os dias, mecanicamente, enquanto visto a minha farda de taxista dos meus filhos e organizo logísticas inteiras, de família inteira. Aquela não é uma zona desconhecida, ou pouco frequentada por mim. É uma artéria da cidade perfeitamente comum à mais comum das mães e ao mais comum dos pais, zona de passagem na baixa desta cidade que é a minha. Lá passei eu hoje outra vez, como em todos os outros dias e vi-os. Acredito que eles próprios, ou outros parecidos, também lá estivessem nos outros dias, mas  nunca os tinha visto, ou a outros parecidos com eles... se calhar, nos outros dias, venho dentro da minha nuvem, que paira à minha volta, como uma i cloud, que tudo em si encerra, para mais tarde nos mostrar... 
Estavam sentados num banco de jardim e muito apaixonados. Beijavam-se longamente e enquanto durou a fila de trânsito onde eu seguia, em "pezinhos de lã", lá ia durando aquele beijo adolescente e apaixonado. Sorri sozinha... Eu sempre tive algum recato em fazer estas manifestações de carinho tão públicas. Sempre achei o beijo, esse de amor, meu e nosso e só nosso e íntimo e privado e sagrado  e, por isso, nunca gostei de o expor assim, em público, mas isso é um problema meu a que este casalinho estava completamente alheio, certos de que o seu beijo era o melhor e mais verdadeiro e profundo de todos. Penso que será assim sempre que nos beijamos com paixão, parecendo que somos só nós que existimos no mundo.
O carro seguiu e lá foi ficando o beijo para trás... à minha frente, uma ria que se diz, e que é, formosa, uma água que ia até lá ao fundo, uma ilha barreira ao longe, como um pontinho pintado no horizonte, dois barcos que vagueavam por ali e um céu sarapintado com laivos de vermelho alaranjado... Lembrei-me de uma brincadeira que fazia com o Nuno quando era criança. O meu pai dizia-nos que quando o céu, ao final do dia, está assim sarapintado com laivos vermelhos e alaranjados, é porque no dia seguinte fará calor. Brincávamos os dois a tentar adivinhar se seria muito calor, pouco, ou quase nenhum e apostávamos mesmo, para ver quem teria razão... Não sei o que isto terá de científico, ou se terá alguma pitadinha de verdade cósmica, mas aquele beijo adolescente e aquele céu misturado com ria, levaram-me para aí, para a maravilha que é a vida e para as riquezas tão simples que ela sempre terá: os beijos dos adolescentes, num banco de jardim, ao final da tarde e os reflexos do céu no mar, tão prateados e brilhantes
De repente, como uma luz que se acende com um interruptor, esta nuvem cinzenta em que tenho andado pareceu-me irrelevante e percebi que amanhã a vida continuará a ser maravilhosa, mesmo que tenha nuvens teimosas e muito cinzentas a pairar de vez em quando. 
Tornei a sorrir sozinha... o céu estava mesmo alaranjado... será que amanhã vai estar calor?